A cidade de Quixeramobim, situada no coração do sertão cearense, é mais do que um ponto geográfico; é um palimpsesto de histórias entrelaçadas, um testemunho material de resistências, silenciamentos e reinvenções. Sob o sol implacável do semiárido, suas ruas, edificações e paisagens guardam camadas de um passado que desafia as narrativas oficiais e convida a uma leitura arqueológica socialmente comprometida. Este ensaio propõe uma incursão pelas dobras dessa cidade, interpretando-a através das lentes da arqueologia urbana e social, tal como articulado por Agostini e Tessaro (2025), onde, a cidade não é meramente um cenário, mas um agente ativo na formação de identidades e memórias coletivas.
Quixeramobim emerge na história como um entreposto crucial no interior cearense, cuja ocupação remonta ao século XVIII, marcada pela expansão pecuária, pela presença indígena dos grupos Kanindé e outras etnias, e pela complexa rede de relações coloniais (Ponte, 1997; Facó, 2003). Seu tecido urbano inicial foi sendo costurado por dinâmicas de poder, religiosidade e sobrevivência, materializadas em estruturas como a Igreja Matriz, de Nossa Senhora do Rosário e o antigo cemitério, hoje sítios de memória.
Uma arqueologia social urbana em Quixeramobim deve, portanto, buscar nas entrelinhas da materialidade essas narrativas subjugadas. Uma arqueologia social urbana que vai além do tradicional estudo de objetos e estruturas monumentais. Seu foco são os processos sociais, as dinâmicas de poder e as experiências dos grupos muitas vezes invisibilizados pela história oficial. Os vestígios arqueológicos não se limitam a artefatos cerâmicos ou alicerces de taipa; residem também nas formas de ocupação do espaço, nas práticas cotidianas, nas festas populares como a festividades de santo Antônio, e até nos resquícios de antigos açudes e trilhas de gado que moldaram a economia regional (Barros, 2011). São nessas “micro-histórias”, como sugere a aproximação com a micro história italiana (Agostini, 2010; Ribeiro, 2012), que encontramos pistas para compreender como se deram os processos de exclusão, adaptação e resistência.
A cidade foi também berço de Antônio Conselheiro, líder espiritual e social do movimento de Canudos. Sua trajetória, iniciada em Quixeramobim, é sintomática das tensões entre o projeto modernizador do Estado e as formas alternativas de organização social e religiosa no sertão (Villa, 2000). Uma arqueologia que se pretenda social não pode ignorar como figuras como a dele foram silenciadas pela história oficial, mas permanecem vivas na memória oral e na paisagem seja no sítio onde supostamente nasceu, seja nas romarias que ainda hoje acontecem.
Além disso, a expansão urbana recente tem tensionado a relação entre passado e presente. Processos de “requalificação” e especulação imobiliária ameaçam apagar vestígios importantes, especialmente em áreas periféricas e comunidades tradicionais, repetindo lógicas coloniais de apagamento (Almeida, 2018). Aqui, ecoam as contribuições de Muniz e Agostini (2025) sobre a necessidade de uma arqueologia indisciplinada e contra-colonial, que dialogue com os movimentos sociais e valorize os saberes locais.
O desafio, então, é praticar uma arqueologia com Quixeramobim, e não apenas sobre ela. Isso implica ouvir os mestres da cultura, as rezadeiras, os moradores antigos, os jovens dos coletivos culturais. Implica reconhecer que o patrimônio arqueológico não está apenas sob a terra, mas também nas palavras, nos gestos, nos modos de fazer e de viver.
No âmbito da conservação do patrimônio cultural, observa-se uma tendência crescente na formação de parcerias multissetoriais, as quais congregam esforços de instituições públicas, privadas e da sociedade civil. Essas colaborações visam superar os desafios inerentes à preservação, notadamente a escassez de recursos financeiros, a carência de expertise técnica especializada e a necessidade de engajamento comunitário. Através de modelos como os incentivos fiscais da Lei Rouanet, acordos de cooperação técnica internacional ou patrocínios corporativos, é possível viabilizar intervenções de restauro em bens materiais como edificações históricas e acervos museológicos e fomentar projetos de registro e salvaguarda de bens imateriais, a exemplo de saberes tradicionais e expressões culturais.
Paralelamente, a eficácia dessas iniciativas é amplificada quando ancorada em uma gestão participativa, que reconhece as comunidades detentoras como agentes primordiais no processo de conservação. No campo do patrimônio imaterial, esta premissa é fundamental, pois a viabilidade das manifestações depende da transmissão intergeracional de conhecimentos e de sua contínua recriação no seio do grupo. Dessa forma, as parcerias transcendem o mero aporte financeiro, evoluindo para arranjos de cogestão onde o conhecimento acadêmico-científico dialoga com os saberes tradicionais, garantindo que as ações de conservação sejam culturalmente apropriadas, sustentáveis e capazes de assegurar a perpetuidade da memória e da identidade cultural.
Em síntese, Quixeramobim oferece um campo fértil para repensar a arqueologia urbana a partir de uma perspectiva social e decolonial. Seu chão é feito de camadas de lutas, fé e poeira — e é escavando nessas dobras que podemos contribuir para uma história mais plural e justa, onde o passado não seja museificado, mas vivido e ressignificado.
Referências Bibliográficas
AGOSTINI, C. Panelas e paneleiras de São Sebastião: um núcleo produtor e a dinâmica social e simbólica de sua produção nos séculos XIX e XX. Vestígios – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v. 4, n. 2, p. 126-144, 2010.
AGOSTINI, C.; TESSARO, P. A. B. Nas dobras da cidade: arqueologia social urbana em perspectiva. Vestígios – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v. 19, n. 2, p. 4-12, 2025.
ALMEIDA, R. M. de. Urbanização e conflitos socioambientais no sertão central cearense. Fortaleza: Edições UFC, 2018.
BARROS, F. F. de. História geral do Ceará. Fortaleza: ABC Editora, 2011.
FACÓ, R. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.
PONTE, S. da. Quixeramobim: história e genealogia. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1997.
RIBEIRO, L. Maria, Párvoa exposta, Domingos, padre imaculado: ensaio de arqueologia micro histórica. Vestígios – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v. 6, n. 2, p. 131-180, 2012.
VILLA, M. A. Canudos: o povo da terra. São Paulo: Ática, 2000.
Felipe Gerônimo
Filiado IPHANAQ

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